Quando o plano de saúde diz “não”

O que a lei realmente permite e o que a Justiça vem corrigindo?

A negativa do plano de saúde


Imagine abrir o e-mail do seu plano de saúde e descobrir um reajuste de mais de 120%. Ou precisar de um tratamento prescrito pelo seu médico e ser informado de que o procedimento “não está no rol da ANS”. Essas situações, infelizmente, se tornaram comuns. O problema é que a maioria das pessoas não sabe até onde o plano pode ir — e onde começa o seu direito de dizer “basta”.

Aumento abusivo

Em 2024, uma decisão publicada no portal Migalhas chamou atenção: uma beneficiária de 49 anos teve o valor do seu plano reajustado em 122%. A Justiça entendeu que o aumento era abusivo e determinou a revisão imediata, com base na boa-fé contratual e no princípio da função social dos contratos. A decisão não foi apenas sobre números. Ela mostrou o quanto a relação entre usuários e operadoras ainda precisa de equilíbrio.

Quando o consumidor contrata um plano de saúde, o que se espera é previsibilidade: saber que, diante de um problema, o atendimento estará garantido. Por isso, reajustes desproporcionais, negativas de cobertura e limitações indevidas acabam sendo mais do que uma quebra contratual — são uma quebra de confiança.

O "rol da ANS"

O ponto central das disputas envolvendo planos de saúde está no chamado rol da ANS, uma lista que define quais procedimentos devem ter cobertura obrigatória. Durante muito tempo, discutiu-se se esse rol seria taxativo (restrito apenas ao que está listado) ou exemplificativo (um guia mínimo, que pode ser ampliado).

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em recentes decisões, entendeu que o rol da ANS é taxativo e mitigado. Isso significa que, embora ele sirva como referência, há exceções. Em casos em que o tratamento é essencial, prescrito por médico habilitado e sem alternativa terapêutica eficaz, a negativa é considerada abusiva.

O entendimento reforça que o contrato de plano de saúde não pode ser interpretado de forma rígida. A saúde, por sua natureza, exige cuidado individualizado — e o direito não pode ignorar isso.

Limitação de terapias

Outro ponto recorrente nas ações judiciais é a limitação de sessões de terapias, como fonoaudiologia, psicologia e fisioterapia. A prática de restringir o número de atendimentos tem sido vista pelos tribunais como abusiva, quando interfere diretamente na eficácia do tratamento.

Em artigo publicado pelo Migalhas, especialistas destacaram que o STJ tem reiterado o dever dos planos de custear o tratamento conforme prescrição médica, ainda que ultrapasse os limites fixados pela operadora. A justificativa é simples: negar cobertura é colocar o contrato acima da saúde da pessoa, o que viola princípios básicos do Direito do Consumidor.

Muitas vezes, a negativa vem acompanhada de termos técnicos ou respostas padronizadas. Por isso, é importante registrar por escrito a solicitação de cobertura, guardar o laudo médico e anotar protocolos de atendimento. Essas provas são essenciais para demonstrar o abuso, caso seja necessário ingressar com ação judicial.

Os tribunais têm reconhecido, cada vez mais, o direito do consumidor em situações como: negativa de cobertura de tratamento essencial; reajuste desproporcional por faixa etária; cancelamento de plano sem aviso prévio; e limitação de sessões prescritas por médico responsável.

Decisão Histórica do STF

Nesse mesmos sentido, em 08/10/25, em uma decisão histórica, o STF formou maioria para invalidar a aplicação de reajustes por mudança de faixa etária para beneficiários com 60 anos ou mais, mesmo em contratos de planos de saúde assinados antes da vigência do Estatuto do Idoso (lei 10.741/03).

O julgamento trouxe relevante repercussão para o setor de saúde suplementar e para milhões de consumidores de planos de saúde.

Cada caso deve ser analisado individualmente, mas o que se vê é uma tendência clara: o Judiciário tem se posicionado para restaurar o equilíbrio contratual e proteger o direito à saúde.

Planos de saúde são, por natureza, contratos de confiança.

Quando essa confiança é rompida, não resta apenas o prejuízo financeiro, mas também o emocional — a insegurança de não saber se o plano que deveria proteger vai realmente estar lá quando for preciso.

O Direito não pode eliminar os imprevistos da vida, mas pode — e deve — garantir que eles sejam enfrentados com dignidade. E é isso que as recentes decisões judiciais têm feito: devolver previsibilidade e justiça às relações que, por muito tempo, foram desequilibradas.

Bibliografia e referências:

MIGALHAS. Planos de saúde, negativa de cobertura e danos: rol de desafios. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/375376

MIGALHAS. Plano de saúde terá de reduzir reajuste de 122% a cliente de 49 anos. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/422913

MIGALHAS. Abusividade da limitação de sessões terapêuticas pelos planos de saúde. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/426090

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1886929/SP. Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 2022.

CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990.

AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR (ANS). Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, atualização 2024.

MIGALHAS . STF afasta os reajustes de faixa etária após os 60 anos. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/441930/stf-afasta-os-reajustes-de-faixa-etaria-apos-os-60-anos